sexta-feira, 22 de novembro de 2013

O canto da Genoveva



Nos primórdios do tempo nesta terra, havia um passarinho que nasceu cantando lindamente e encantava toda a floresta. Era um pássaro especial, com um canto incomum, que viveu por muitos anos, abençoado pelo próprio tempo, que não queria envelhecê-lo só para ouvir suas melodias. Mas, o inverno, invejoso porque seu canto era mais bonito que o assobio de seu vento, desceu implacável sobre ele. O pássaro morreu cantando, tentando se aquecer na força do seu cantar. Mas, nem seus agudos conseguiram romper o gelo; e a pobre ave se petrificou, e foi esquecida na era glacial.

Séculos depois, nasceu mulher, filha de um sapateiro, que a batizou de Genoveva. Era um ser incomum. Possuía um rosto lindo, o tronco arredondado como o de um passarinho e as pernas finas, com pés maiores que o normal. Bem cedo o seu canto se manifestou e foi notado por todos.

Seu pai a levou para cantar no coral da igreja, e o maestro se encantou com sua melodiosa voz.

Genoveva estudou, formou-se professora e, todo domingo, cantava no coral de sua paróquia. Quando o maestro faleceu, assumiu o seu lugar, bem jovem.

Um aluno seu um dia foi para a capital, estudar em um famoso conservatório. Formou-se cedo e, com apenas vinte anos, tornou-se maestro e aos vinte e cinco já era um dos mais famosos compositores de ópera.

Genoveva, nesta época, estava com trinta anos, quando foi convidada para cantar uma ária composta especialmente para ela. Recusou, alegando não gostar de ópera.

Seu ex-aluno não desistiu. Sempre que abria uma audição para formar um novo elenco, lhe convidava. Genoveva ignorava suas cartas.

Um dia, quando Genoveva completou quarenta anos, o jovem maestro apareceu em sua cidade determinado a convencê-la. Encontrou-a cantando em um teatro de peças burlescas, nos guetos da periferia onde morava.

- Toda vez que tem audição, eu te mando uma carta. Fico olhando no meio das candidatas procurando pelo teu rosto, mas você nunca está lá. Por quê?

- Já disse que não gosto de ópera.

- Mas, gosta de música. Esqueça o lugar, a história da peça, e todo o resto. Pense somente na música. Ela é maior que tudo. Os palcos do mundo precisam conhecer sua voz. Há tantas divas com talento inferior ao seu, que alcançaram os píncaros da glória. Por que reluta tanto em abraçar seu destino?

- Sou feliz onde estou.

O jovem regente partiu desolado, para nunca mais voltar. E Genoveva continuou em sua cidade, cantando nos guetos.

Enamorou-se de um trovador, que a levava junto para cantar nas praças; até morrer embriagado.

Genoveva ficou triste, com o coração partido, e buscou refúgio no seu canto, que ganhou um marcante tom de melancolia.

Começou a cantar nas tavernas, encantando poetas, boêmios, atrizes e meretrizes. Seu canto, pouco a pouco foi se apagando, perdendo o brilho e desaparecendo entre o som do tilintar de copos e pratos, berros e gargalhadas, brigas e discursos inflamados.

Genoveva, com o olhar perdido, um dia percebeu-se como uma simples peça de um cenário pintado por algum artista de mau gosto. Seu espírito sentiu um frio pior do que aquele que a matara quando ainda era um passarinho.

Foi embora. Criou coragem e partiu para a capital, determinada a tornar sua arte conhecida.

Mas, quando ainda estava na estrada, em uma noite de inverno, antes de chegar à capital, o frio invejoso novamente congelou seu canto, e o vento soprou forte e implacável no seu funeral. Entre os presentes, só alguns conhecidos das tabernas por onde andou, e o jovem maestro que um dia a admirou.

O som da terra, caindo sobre o caixão, soava como o acompanhamento de uma ária, cantada por ela nos seus tempos áureos. Só o jovem maestro conseguia ouvir.

Quando o coveiro terminou, todos foram embora. Só o maestro permaneceu diante de seu túmulo, pensativo e preso às lembranças de um canto distante.

O velho guarda do cemitério veio chama-lo, antes de fechar o portão. Ao vê-lo tão concentrado e imóvel, perguntou-lhe:

- No que tanto pensas, meu jovem?

- Penso em quantas estrelas, de brilho incomum, reluziram neste céu, sem serem notadas, por estarem distantes, ou posicionadas atrás de asteroides sem vida. Penso nos seres talentosos que nascem com o dom de encantar o mundo, e perdem-se em si mesmos. Penso em pequenos momentos de brilho que justificam, em poucos segundos, toda uma existência.

Os portões do cemitério se fecharam, e o jovem caminhou pela velha estrada, sozinho; enquanto a tarde dava lugar à noite, e os pássaros cantavam em coro, como se saudassem o por do sol.

Extraído do meu livro “Crônicas dos espíritos da Terra”

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Monólogo do Beraldo


Esse danado do meu fio já nasceu com um parafuso a menos e ninguém me tira da cabeça que ele foi gerado no dia em que o circo passou aqui pela cidade. Naquela noite eu levei minha esposa para ver o espetáculo e me lembro que ela riu tanto do show dos palhaços, que chegou a se urinar de tanto gargalhar. Ficou morta de vergonha, que teve que ir no banheiro se limpá. Quer dizer, banheiro, banheiro não era. Esse povo de circo é tudo nômade. Mas, a verdade é que ela sumiu por mais de uma hora. Não viu o resto do espetáculo. Eu fiquei esperando, assistindo ao mágico, ao domador... que até esqueci do tempo. Ela me disse que se perdeu e não encontrou nenhum banheiro. Se não fosse um palhaço bondoso, que apareceu e ofereceu pra ela usar o banheiro do furgão dele, a pobrezinha tinha voltado toda suja. Mas, como tudo na vida se ajeita, ela apareceu no final do show: limpinha, sorrindo e satisfeita. Como ela só viu o show dos palhaços e ainda fez amizade com um deles, eu acho que isso influenciou no momento da concepção do nosso filho, que nasceu nove meses depois gargalhando como um anormal. Minha mulher, naquele dia, deve ter ficado tão cheia de graça, que engravidou; e o menino só foi entender a piada nove meses depois. Francamente, eu não sei do que é que ele acha tanta graça. Mas, na hora de batizar, eu não tive nenhuma dúvida quanto ao nome. Batizei como Hilário. Hilário Dias dos Santos, que via graça em tudo.

Trecho do meu espetáculo teatral "Um jeito matuto de ser" (uma comédia musical), escrito em parceria com Rogério Favoretto

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Para meus amigos desesperançosos


“Observe aquela árvore no jardim do seu vizinho. Veja como cresce, curvada e torcida. Algum sopro de vento trouxe o gérmen, do qual ela brotou, à fenda da rocha; cercada de rochedos e edifícios, oprimida pela Natureza e pelo homem, a sua vida tem sido uma contínua luta pela luz – luz que é a necessidade e o princípio dessa vida mesma: veja como se tem agarrado e enroscado; como, onde encontrava uma barreira, esforçou-se, criando o caule e os ramos, por meio das quais conseguiu elevar-se e pôr-se em contato com a clara luz do céu. Que é o que a tem preservado e protegido contra todas as desvantagens do seu nascimento, e contra as circunstâncias adversas? Porque são as suas folhas tão verdes e formosas como as da parreira que estão aqui, e que, com todos os seus braços, desfruta o ar e o sol, sem empecilhos? Minha filha é porque o instinto, que impelia a lutar, porque os esforços que tem feito para alcançar a luz, a levaram a alcançar por fim, essa luz que tanto procurava. Assim, pois, com o coração valente, atravesse os adversos acidentes e as mágoas do fado, dirigindo o olhar interno ao sol, e lutando para alcançar o céu; é esta luta que dá saber aos fortes, e felicidade aos fracos. Antes que nos tornemos a ver, você terá olhado mais de uma vez, com olhos tristes e pesados àqueles ramos, e quando ouvir como as aves trinam, pousando neles, e quando vir como os raios do sol, vindo, de esguelha, do rochedo e da cumeeira da casa, brincam com as suas folhas, aprenda a lição que a Natureza lhe ensina, e lute, atravessando as trevas, para chegar à luz!”

*Trecho extraído de “Zanoni” – Romance Ocultista escrito pelo inglês Sir Edward Bulwer Lytton (1803/1873) – Tradução de Francisco Valdomiro Lorenz – Editora Pensamento.